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Testemunhos de sobreviventes

Leia a seguir

Ainda só meu cérebro sabe explicar o que aconteceu

  • Aya M.'s story

Você não pode confiar em ninguém. Vamos pegar uma carona e fugir daqui

Combinei com o Lior Weitzman que sairíamos com o nascer do sol. Eu faria o pedal  de Beeri para Netivot e ele de Sderot para Netivot, lá nos encontraríamos e faríamos juntos o caminho de bicicleta como em outros sábados.



Aya M. and Lior Weizman smile


Às 6:10 Lior mandou-me uma mensagem dizendo que estava de saída e compartilhou comigo sua localização, em tempo real. Calcei os sapatos, conectei o GPS e o medidor de batimentos cardíacos. Compartilhei com Lior minha localização e saí. Neste horário o kibutz (Beeri) ainda estava dormindo. Tudo estava silencioso  e calmo. Sai do kibutz e pedalei na direção de Alumim. Depois de uns 200 metros começaram a cair foguetes, o sistema antiaéreo Domo de Ferro reagia a cada um deles. Desci da bicicleta e deitei em uma valeta ao lado da estrada com as mãos sobre a cabeça.


Liguei para o Lior e disse-lhe que estão lançando muitos foguetes e que se cuidasse. Quando a situação se acalmar poderemos dar meia volta e voltar para casa. Carros pararam ao meu lado, alguns motoristas deitaram ao meu lado, e outros fotografavam os foguetes. Quando a situação se acalmou, subi na bicicleta e voltei os 200 metros em direção ao cruzamento para o kibutz e entrei no bunker de proteção ao lado da estrada. Chegaram muitas pessoas que estavam na festa Nova e outros bicicleteiros que tinham planejado fazer os percursos ( singles ) da região. O bunker ficou apertado. Decidi que no primeiro instante possível eu iria sair e voltar para casa.


No meio do caminho, na estrada de acesso ao kibutz, vi 3 vultos correndo em minha direção. Os reconheci, eram trabalhadores do refeitório do kibutz que moravam em Rahat. Eles  fizeram sinais com as mãos e gritaram algo. No começo não entendi o que estavam gritando, então reduzi a velocidade até parar. Eles vieram até mim e estavam muito agitados, contaram que os terroristas tinham entrado no kibutz e atiraram no responsável da segurança e em outras pessoas. Eles disseram que pegaram o carro e os telefones deles, e que apenas foram soltos porque falavam árabe e eram palestinos.


Sem pensar duas vezes, joguei a bicicleta de lado e comecei a correr em direção ao cruzamento junto com eles. Os sapatos especiais de bicicleta atrapalham-me  na corrida, então  retirei-os e continuei a correr. Um dos trabalhadores que estavam comigo  disse-me: “ Você não pode confiar em ninguém. Vamos pegar uma carona e fugir daqui”. Quando chegamos ao cruzamento gritamos para quem passasse que havia terroristas e que deviam fugir. Mas, parece-me que não entenderam ou não nos escutaram. Atravessamos a estrada e tentamos parar algum carro. Ninguém parou para  a gente.


Então vimos que os carros que tinham passado estavam voltando em nossa direção. Um dos motoristas gritou que havia tiros nos cruzamentos e na estrada.


Decidi correr em direção a Shukeda e de lá para Netivot. Eu conhecia bem a região pois estava acostumada a pedalar por lá. Mas uma mensagem de meu irmão me “derrubou”, ele me disse que um dos bicicleteiros do kibutz foi atingido justamente na rota que pretendia passar. Entendi que estávamos cercados.


Disse ao rapaz que estava comigo que não havia para onde fugir e que deveríamos nos esconder nos arbustos. Procurei por algum arbusto que fosse denso. Sem pensar duas vezes, tendo espinhos ou não, nos deitamos embaixo de um arbusto entre os espinhos. Sem falar. Apenas respirando. Pelo meu telefone, ele  enviou uma mensagem para sua família para que avisassem a polícia ou alguém na cidade de Rahat para que viessem salvarmos.

Escutamos os terroristas passando pela estrada, estavam com motos, carros e até tratores montados com arados.

Vimos helicópteros nos céus. Tiros, alarmes de segurança e um forte jato de ar provocado por algo que explodiu ao nosso lado. Em retrospectiva, parece-me que foi provocado por uma granada lançada para dentro do bunker onde estava há pouco e que matou as pessoas que estavam lá escondidas. Cheiro de queimado no nariz. Todos os tipos de foguetes e balas passaram ao nosso lado, sabia que não podíamos nos levantar.



Aya is lying on the ground and the bike is thrown aside

A cada hora enviava uma mensagem para Omri para que saiba que ainda estava viva. Pelo grupo de WhatsApp do kibutz fiquei sabendo do que estava acontecendo por lá e rezei para que não entrassem em casa e que minha família conseguisse sobreviver. Pela  cabeça passaram-me todos os pensamentos naquele instante, tentei acalmar e não entrar em pânico. Fiz muitos exercícios de respiração. Alternava  a posição  de bruços e de costas quando havia ruídos de tiros ao nosso redor. O capacete de bicicleta ainda estava vestindo para me proteger enquanto escondia os óculos de sol para que não reluzisse. Depois de 7-8 horas o pessoal de Rahat que veio nos salvar,  mandaram-nos uma foto que estavam bem ao nosso lado e nos pediram para sair. Corremos em direção ao carro e começamos a viajar.


Neste momento já havia bastante unidades militares que estavam vasculhando a região. Eles gritaram para que parássemos pois viram que os passageiros do carro tinham feições árabes ( neste momento não diferenciavam  entre árabes e beduínos). Saímos rapidamente do carro e gritamos para os soldados que não atirassem, pois eles vieram nos salvar . Os soldados aproximaram-se de nós e pediram as carteiras de identidade. Quando me viram, pensaram que eu tinha sido sequestrada, e ficaram temerosos.

Neste momento descontrolei-me, caí no chão. Não conseguia ficar de pé e chorava muito.Perguntaram-me se estava ferida, e respondi que não, e pedi que apenas nos retirassem de lá.


Os soldados compreenderam a situação e que eles eram pessoas que vieram ajudar. Colocaram no nosso carro mais 2 pessoas que também estavam escondidas na vegetação e  liberaram-nos. Pediram que viajássemos para o moshav Patish, onde tinha sido montado um ponto de apoio. Os beduínos estavam acostumados com a região, e sabiam para onde ir. No caminho vimos carros abandonados, queimados e destruídos, sem vestígios de seus passageiros.


No horizonte, na direção das colônias ao redor de Gaza havia muita fumaça. Vimos árabes presos com os olhos vendados e as mãos atadas ao lado de grande número de soldados.


Chegamos em Patish e de lá fomos para a estação de polícia em Ofakim. Estavam lá reunidos muitas pessoas que estiveram na festa, alguns com sangramentos, e em choque. Todos sujos de poeira e areia, pois ficaram deitados no chão, cada um com sua história de terror. Algumas sirenes de emergência e a informação de que havia terroristas em Ofakim deixaram-me inquieta. Entrei em um bunker que lá havia e demorei muito tempo para que conseguisse sair do local..


Neste momento já tinha tido contato com os  meus irmãos.Disseram-me que meu cunhado e meu sobrinho foram mortos. Meu irmão e minha  sobrinha estavam sendo transferidos para o hospital e eles iriam se juntar-lhes ..Consegui também falar com minha mãe. Desmoronei  completamente. Sentei e chorei sem parar. Um choro de ruptura pois ainda não compreendia o tamanho da tragédia e o tamanho da sorte que tive em toda esta história.


Um dos oficiais da polícia disse que um ônibus iria levar a todos para Beer Sheva e que eu teria que sair pois não iriam deixar ninguém em Ofakim. Neste momento recebi um telefonema do responsável pelo refeitório do kibutz que morava em Rahat. Ele disse-me que iria tomar conta de mim, e iria levar-me para onde quisesse. Disse-lhe que já estava no ônibus indo para Beer Sheva. Informou-me  que iria viajar de carro atrás de nós, e quando descesse do ônibus eu poderia subir no carro dele. Desci e entrei no carro dos amigos. Passamos por Rahat pois eles queriam comprar-me comida e bebida. O pai do Omri esperou em Kiriat Gat pois não queríamos que ele se aproximasse da região dos tiroteios. Nos encontramos com ele, fui para o carro dele, e nos dirigimos para Kfar HaNagid.


Eu conheci o Lior quando nos preparamos para um passeio organizado de bike. Entrou no grupo e parecia que sempre fez parte dele. Ele era novo no mundo do triatlo e tinha muitas perguntas, tentava absorver o máximo de informações. Devido a seus preparativos para a competição de Ironman e meu preparativos para IsraMan, decidimos pedalar juntos aos  sábados. Lior criou um grupo de WhatsApp com bicicleteiros da região para organizar passeios aos sábados que se tornaram cada vez mais longos ao nos aproximarmos das competições. As provas de triatlo de Ashkelon e Ashdod fizemos juntos. Esperávamos um ao outro para escrever os números, e conversávamos e riamos muitos nos pedais de sábado. Lior tinha um grande senso de humor e um grande sorriso no rosto.

No final do triatlo de Ashdod, depois que subi no pódio e que me fotografou, perguntou-me: “Aya, quando eu vou subir no pódio?” Disse-lhe que por conhecer sua força de vontade tenho certeza que vou te ver muitas vezes no pódio.


Mais tarde soube que Lior, meu companheiro de pedais de sábado e competições, foi morto por tiros na entrada de Sderot. Esta é uma grande perda para todos nós

Senti-me  muito mal, parecia que iria desmaiar.Chamaram-me uma ambulância, que me fez alguns exames.Disseram que estava bem fisicamente e que os testes deram bons resultados. Assim, decidi não ir para o hospital apesar da recomendação. Fechei os olhos e escutei tiros e gritos de guerra. Não conseguia adormecer. A todo momento checava no grupo do kibutz se tinham conseguido evacuar Omri e as crianças. Apenas de madrugada conseguiram retirar Omri e as crianças pela janela do mamad pois a porta estava travada, e eles se juntaram a nós em Kfar HaNagid. A bicicleta salvou minha vida me impedindo de estar no kibutz no momento do ataque, e talvez também de meu marido que estava tomando conta das crianças, pois se não tivesse saído ele teria se juntado ao grupo de segurança  do kibutz que em sua maioria não sobreviveu.


Meus pais foram resgatados apenas bem mais tarde pois ainda havia tiroteios. Foram salvos em boas condições. Meu irmão passou por duas operações e provavelmente vai ter sua perna amputada pois perdeu muito sangue. Minha sobrinha passou por uma operação para remoção de fragmentos de suas pernas, e agora está bem.


Através do grupo de WhatsApp de Kfar HaNagid conseguimos doações de roupas e sapatos para todos nós. Perco o controle de tempos em tempos, mas, volto a situação normal por causa das crianças. De vez em quando ainda escuto tiros, mas,concentro-me  para acalmar e entender que tudo vem da minha cabeça. Agora estamos nos organizando para viajar para o Mar Morto pois sei que para as crianças será bom estar com seus amigos.


Cada vez mais chegam notícias de mortos e desaparecidos. E ainda falta muita informação. As coisas não voltarão a ser como antes. E uma pequena anedota, de humor negro - meu GPS ficou na bicicleta que abandonei. Assim, se alguém de nossas forças de segurança achar minha bicicleta e meu GPS, por favor encerre a atividade no Garmin. De agora em diante temos outra atividade a cumprir - juntar os fragmentos e consertar nosso coração partido, apesar de ter dúvidas que teremos sucesso.  


Nós estamos principalmente quebrados, estraçalhados e atônitos, desmoronamos  de tempos em tempos e depois voltamos a sermos fortes para as crianças. E agradecemos que ( ainda ) estamos vivos.



Aya M.


Source: Runpanel

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